terça-feira, 28 de julho de 2009

Mulher Esqueleto

Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse o que havia sido. E seu pai a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Um dia um pescador veio pescar, porém, estava afastado da sua colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu - logo em quê! - nos ossos das costelas da Mulher-Esqueleto. O pescador pensou: "Oba, agora peguei um grande de verdade! Agora peguei um mesmo!" E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.

A descoberta acidental do tesouro = a descoberta do outro como um tesouro, muito embora no início não se perceba o que foi encontrado. O pescador pega mais do que jamais esperou - esse é grande! - mas não se dá conta de que está trazendo à superficie a criatura mais apavorante que jamais conheceu, ele não sabe que terá que se entender com a criatura, que todos os seus poderes serão testados...

O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim.

Ele não sabe que não sabe: é o estado de todos os apaixonados no início, são todos cegos como morcegos. Os muito jovens não sabem exatamente o que estão procurando, os famintos buscam o sustento e os feridos buscam compensação por perdas anteriores. Mas todos querem que o tesouro "caia do céu" ( obá, esse é grande!).

Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado à superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos. - Agh! - gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho forte. - Agh! - berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra.

Quem já não começou um rolo só a procura de um pouco de emoção? Companhia para uma noite? Mas sem que percebamos entramos em contato com a mulher-esqueleto, e saímos correndo. Amar significa ficar quando cada célula nos manda fugir. Ao primeiro encontro com o amor de verdade o impulso é o de correr o mais rápido possível. A mulher-esqueleto, que passou uma eternidade debaixo d'água (subterrâneo = inconsciente) é a que observa as coisas, sabe quando chegou a hora de uma coisa, um ato, um grupo ou um relacionamento morrer (o que morre são as iluções, as expectativas, a voracidade de querer tudo que seja só lindo). Essa sensibilidade psicológica aguarda aqueles que estão dispostos a soerguer ao nível do consciente pelo ato de amar o outro.

Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado, pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas. - Aaagggggghhhh! - uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saía correndo agarrado à vara de pescar. E o cadáver branco da Mulher-Esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado a secar. O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do peixe celado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava.

A ligação sempre iniciada com toda a boa vontade oscila, cambalança quando o estágio de "enamoramento" se encerra. Depois, em vez da encenação de uma fantasia, começa a sério um relacionamento mais desafiador, e toda a nossa experiência e habilidade precisam ser postas em ação. O desejo de forçar o amor a prosseguir somente no seu aspecto mais positivo é o que faz com que o amor acabe morrendo, e para sempre. Amar é ficar com, quando as pernas mandam fugir.

Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou-se direto no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses. Imaginem quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela - aquilo! - jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro, um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo.

Estranho fenômeno que ocorre com os casos de amor: quanto mais ele corre, maior velocidade ela alcança. Quando um parceiro ou outro tenta correr do relacionamento, esse relacionamento recebe mais vida, quanto mais vida é gerada, mais assustado fica o pescador, e quanto mais ele corre, mais vida se cria. É uma das tragicomédias da vida. A fase de correr e se esconder é o período no qual os amantes tentam racionalizar seu medo dos ciclos de amor, da vida-morte-vida. É por isso que quando as coisas ficam enredadas e assustadoras nos relacionamentos amorosos, as pessoas receiam que o fim esteja próximo, mas não está. Esse medo de enfrentar a natureza da morte é que ativa a necessidade de fuga, na tentativa de manter apenas os aspectos agradáveis do relacionamento. Não funciona. É preciso enfrentar a mulher-esqueleto, dar o próximo passo na direção de um fortalecimento da nossa capacidade de amar. Se quisermos amar, não há como evitar abraçar a megera. Amar os prazer é fácil; amar de verdade exige um herói que consiga controlar seu próprio medo.ovelo.

Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um quê de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar. - Oh, na, na, na - Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos. - Oh, na, na, na - Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-Esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano. Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando, enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra - não tinha coragem - para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá embaixo nas pedras, quebrando totalmente seus ossos.

Se formos ao amor que estivermos nos dedicando, mesmo que estejamos assustado, precisamos estar dispostos a desembaraças os ossos, a tocar o não-belo no outro e em nós mesmos (quando nos superamos para tocar o não-belo, somos sempre recompensados). Desembaraçar a mulher-esqueleto é começar a quebrar o encanto, ou seja, o medo de sermos consumidos. Quem está vivo tem medo. Tem-se que enfrentar o medo e adquirir a capacidade de ver o que vem depois, de compreender melhor como se relacionam os aspectos da psique, para conquistar um conhecimento de si e do outro, para reforçar nossa capacidade para participar de todas as fases, os projetos, as eras de incubação, nascimento e transformação. É preciso um coração disposto a morrer, renascer, morrer e renascer, repetidamente. Como se desembaraça? Cantando (Oh, na, na, na). Qual a canção? A canção da consciência (as perguntas difíceis): o que eu sei que precisa morrer mas hesito que isto ocorra? o que precisa morrer em mim para que eu possa amar? qual é o não-belo que eu temo? o que deve viver? qual vida tenho medo de dar á luz? se não for agora, quando?

O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. E foi isso o que aconteceu com o homem.

O sono da confiança, que é alcançado quando descartamos as atitudes defensivas e voltamos a mergulhar no estado de deslumbramento da juventude ou da velhice. Diz-se que tudo o que procuramos também está à nossa procura, mas é preciso ficar quietinho para que nos encontre. Depois que ele aparecer, não devemos fugir (existe uma prudência que é verdadeira, quando o perigo está por perto, e uma prudência injustificada e que se origina de algum ferimento anterior). Para que o amor viceje, o parceiro precisa confiar que o que vier será de natureza transformadora.

A Mulher-Esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo e, de repente, ela sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.

A lágrima vertida é a lágrima da compaixão, por si e pelo outro. É a lágrima mais difícil de ser derramada, especialmente para os homens e para certos tipos de mulheres "calejadas pela vida". Normalmente ela surge depois da descoberta acidental do tesouro, depois da perseguição apavorante, depois do desembaraço dos ossos - pois é a combinação destes atos que gera a derrubada das defesas, o exame de si mesmo, o despir-se até os ossos, o desejo de conhecimento e de alívio. Tudo isto faz com que a pessoa investigue o que a alma realmente quer e chore pela perda e pelo amor de ambos. A lágrima surge quando aquele que virá a ser um amante se permite sentir seus próprios ferimentos e curá-los, quando se permite ver a autodestruição provocada pela perda da sua fé na bondade do self, quando ele se sente isolado do ciclo protetor. Então ele chora, por sentir sua solidão. Amar o outro não basta, dar apóio, estar disponível quando necessário, nada disso basta. O objetivo é estar familiarizado com o seu próprio ferimento (para poder se familiarizar com o ferimento do outro). Amar é sentir o fedor pútrido da ferida, limpá-la, desinfetá-la, e permitir que se cure.

Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm! ... Bom, Bomm! Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta. - Carne, carne, carne! Carne, carne, carne! - E quanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.

Um tambper feito do coração é o que nos permite amar como ama uma criança: totalmente, sem reservas e sem qualquer capa de sarcasmo, depreciação ou protencionismo. Quando a mulher-esqueleto cria, gerando carne para si mesma, a pessoa cujo coração ela está usando sente o que está acontecendo, enche-se também com a criação e transborda com ela. Amar significa abraçar e ao mesmo tempo suportar inúmeros finais e inúmeros recomeços - todos no mesmo relacionamento. Nosso desejo de proximidade e de separação alterna ciclos de crescimento e de declínio. Mas para amar é preciso que se beije a megera, e ainda mais. É preciso que façamos amor com ela. Ela ensina que o excesso de proteção não cria nada, que o egoísmo não cria nada, que se agarrar as coisas e berrar não adianta. Só a soltura, a doação de coração, o grande tambor é que cria.

Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro, enredados da noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro. As pessoas que não conseguem se lembrar de como aconteceu sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo d'água. As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem.

A princípio, ele é o caçador inconsciente. Depois, passa a ser o caçador assustado em fuga. Mas tarde, reconsidera, começa a desenredar seus sentimentos e descobre um meio de se relacionar com ela. Em seguida, ele adormece. Com isso, sua lágrima de sentimento profundo é revelada e alimenta a mulher-esqueleto. Seu coração é emprestado para criá-la por inteiro. E assim, o caçador-pescador é recompensado com o amor. Essa é a transformação típica de uma pessoa que aprende a amar. Amar não é ficar-com apenas no período romântico inicial; amar é ficar-com depois do romantismo. Essa história tem seu valor quando compreendida como uma série de etapas ou de tarefas que ensinam uma alma a amar outra profundamente: a descoberta da pessoa como um tesouro espiritual, depois a caça e a tentativa de ocultação (um tempo de esperanças e receios para os dois lados), desenredar e compreender os aspectos da vida-morte-vida do relacionamento e a compaixão com esta tarefa, a confiança que gera o relaxamento, a capacidade de descansar na presença do outro e da sua boa vontade (compartilhamento de sonhos futuros e tristezas passadas, sendo esta a cura de ferimentos arcaicos relacionados ao amor) e finalmente o uso do coração para fazer brotar uma nova vida.

Esta analise arquétipica está no livro da ESTÉS, Clarissa P. Mulheres que Correm com os Lobos , que eu recomendo para muitas e muitas leituras.

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